quarta-feira, julho 27, 2005

Pirulito amargo

Na calçada em frente à escola um menino espera pacientemente pelo pai. Todos já se foram, falantes e risonhos, para suas casas tratar do restante do dia. Só ele aguarda a chegada tardia do pai, chupando um pirulito. Ninguém nunca aceita o pirulito que o menino oferece. É sempre um pirulito amargo, como não é vendido em lugar algum por ali, muito menos na cantina da escola, onde as guloseimas não param no estoque.

O pai do menino finalmente chega, silencioso e frio, e quando o menino tira o pirulito da boca para tentar mais uma vez lhe contar como foram as aulas, o recreio, as brincadeiras, o pai lhe faz sinal para que se cale e lhe entrega outro pirulito amargo, chupando outro ele próprio. Em seguida eles caminham em silêncio, os olhares sempre abaixo do horizonte, para uma casa em que não há jogos, nem brinquedos, nem cachorros ou gatos. Só há uma enorme despensa cheia de pirulitos amargos, que eles degustam exaustivamente, sem conseguir saber de onde vêm.

terça-feira, julho 26, 2005

A ponta do iceberg

- O que é isso, Aderbal?
- É a ponta do iceberg
- O quê?
- Ora, Amália. Não vá me dizer que você nunca ouviu falar na ponta do iceberg. O iceberg inteiro,vá lá, quase nunca ele aparece. Mas a ponta...
- Você enlouqueceu, Aderbal? Isto aqui é apenas... apenas...
- A ponta do iceberg. Eu sei. Há muito mais lá embaixo. Mas estou prestes a vê-lo inteiro, desvendar esse mistério.
- Você está delirando, Aderbal. Não existe nada disso. Pára de puxar isto para fora. Alguém vai ver e não vai gostar.
- É isso que tem que acontecer. Alguém ver e não gostar. Se intrigar. Se incomodar. Como pode um iceberg inteiro por aqui e a gente se contentar em ver a ponta, se muito...
- Nossa! Como esfriou, de repente!
- Viu? Já está vindo à tona. Acho que está na metade.
- Se você não parar com isso agora eu vou embora, ouviu? Vou te deixar aí com o seu iceberg.
- Você não pode fazer isso. Mais de dez anos casados. Os meninos. Um patrimônio...
- Escolha: o iceberg ou nós.
- Ta bom. Droga! Nunca mais vou ter uma chance assim.

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- A senhora tem certeza de que ele não descobriu?
- Sim, tenho. No máximo viu a metade.
- Ok, a senhora será recompensada. Nunca nos esquecemos de um colaborador.
- Mas... aquilo... era mesmo...
- A ponta do iceberg? Não se sabe. Seja como for, foi levado pela corrente. Um brinde à corrente.A ela... tintim.

sexta-feira, julho 22, 2005

Conselho

Você está prestes a cometer um erro. Portanto, seja sábio e não cometa apenas um. Pois o erro solitário se absolutiza, enlouquece e passa a se ver como a maior das virtudes.

quinta-feira, julho 21, 2005

Segundo a palavra

Dia de pesca na Galiléia. Palavras lançadas à folha, todas tão múltiplas, umas maduras, ao ponto de serem achadas, outras ainda imberbes, desfiando sua juventude entre significados pueris. Foi dura a noite tratando de vê-las, garimpar as necessárias ao sustento de um dia. E foi mudez e angústia o resultado, tão profundas em seu pedaço inacessível de mar, tão mesquinhas em sua ocorrência em geral abundante. Mas veio a manhã messiânica, e uma ordem cálida para que se recolhesse o achado com rede espessa. Era tudo ganhar e não perder sequer um til da lei, quanto mais a própria alma. O barco agora balança inclinado, bojo grato de um contador de histórias. Quem tem ouvidos para ouvir, ouça.

terça-feira, julho 19, 2005

Outro dia

Soltou uma gargalhada inesperada. Mas parou, ao ver que ela não saía espontânea. Retorceu-se da esquerda para a direita, e depois da direita para a esquerda. Mas o movimento lhe pareceu tão calculado que sentiu vergonha da iniciativa. Caretas. Elas tinham também o ar previsível herdado dos comerciais e colegas do escritório. Nada genuíno, nada definitivo. Assentou-se sobre si próprio, e começou a caminhar pausadamente, o passo corriqueiro de todos os dias, sentindo-se perigosamente normal.

sexta-feira, julho 08, 2005

Dicas da Casa de Orates, por Leopoldo Tranco

Suponhamos que você saia daqui e bata a cabeça numa teia de aranha, o que fatalmente acarretará uma lesão na região glúteo-cavernosa da mente. Nesse caso, você deverá se dirigir à Sala de Remendos de Casco, a vigésima terceira porta à direita de quem sofre, na Ala dos Inadimplentes.

Não entre com a mão na cabeça. É falta de etiqueta. Se alguém perguntar qual o problema, diga que só os tolos têm problemas, mas já que está ali, que lhe estanquem aquele sangue incômodo.

Não se cale enquanto estiver sendo medicado. Podem interpretar seu silêncio como desfeita, sofrimento ou mesmo como sinal de maquinações perversas. Diga, por exemplo, que o dia não está tão quente para que não se pense em suicídio, ou teça algum comentário desconfiado sobre a higiene do lugar ou dos que ali labutam, como: “você lavou essa mão?”. Para maiores informações a esse respeito, consulte o oportuno Guia da Conversa Casual, do Professor Sumo Letargo.

Outro fator que não pode ser neglicenciado é a apresentação. Seu traje deve estar impecável. Equilibre o corpo o mais que puder para que o sangue se derrame por igual nos dois ombros. As manchas nos dois ombros devem ostentar a maior simetria possível. Se isso não for possível, alegue em tom casual que a simetria é um ditame a ser desafiado e você milita por uma maior diversidade nas formas.

E nunca, nunca mesmo, elogie ou agradeça o curativo. Onde irá parar um mundo em que um sujeito descaracteriza seu corte de cabelo, envolve sua cabeça com uma bandagem básica sem qualquer adereço, faz com que você cheire álcool ou éter em vez do mais puro perfume parisiense e ainda recebe elogios por isso?

No mais, somos menos.
Leopoldo Tranco

Leopoldo Tranco é estudioso das regras de comportamento e boa convivência da Casa de Orates e escreve neste blog toda vez que consegue driblar os enfermeiros.

quarta-feira, julho 06, 2005

Está nas bancas

Está nas bancas a revista literária Sítio, editada em Portugal por Luís Filipe Cristóvão. Estou nessa edição de lançamento, em saudável companhia: Alexandra Monteiro, Ana Beatriz Guerra, André Trindade, Arnaldo Antunes, Daniel Silva, Eduíno de Jesus, Fabiana Lopes, Golgona Anghel, Löis Lancaster, Mariana Matta Passos, Miriam Luz, Onésimo Teotónio de Almeida, Paulo Toledo, Ricardo Coxixo e Xavier Queipo. Maiores informes em Académico Torres Vedas e Esferovite.