sexta-feira, fevereiro 25, 2005

Terror noturno

O barulhento marca-passo irrita os sensíveis ouvidos do companheiro de quarto e o faz preferir a morte do infeliz. Uma eletricidade que não serve, que incomoda, como a ocorrência de uma lacraia muito próxima, de um escorpião involuntariamente doméstico.

terça-feira, fevereiro 22, 2005

Novelo d'água

Vó Marina, tricotando á margem da janela, de si para si:
- Eta dor no joelho, sinal de chuva.
E a chuva lá fora caindo já havia semanas, enxurrando para o mar todos os presságios.

quinta-feira, fevereiro 17, 2005

Sans souci

Poesia, em vez de ranger os dentes
A rede, em vez da manhã nervosa
Roubá-la, em vez de cheirar a rosa
A queda, em vez de olhar para frente

O sol, em vez de medir o Oriente
A chuva, em vez dos abrigos secos
O grito, em vez de escutar os ecos
O ponto, em vez do verso corrente.

sexta-feira, fevereiro 11, 2005

Quem ri por último

Algo como um tumor, que cresce. Ele me respira metodicamente, sempre expirando menos do que inspira. Assim me consumo alegremente, enquanto ele se abastece, lacônico. Eu e meus chistes, ele e seu ciclo. No fundo, ele sabe que sou mais heróico em minha morte do que ele em sua triunfal sobrevivência. Ele me odiará após ter me matado. Por fim, seu método será envergonhado no seu íntimo ódio por mim.

quarta-feira, fevereiro 02, 2005

O eu pernóstico e os outros eus

Disseram-no um gênio, e ele creu
A Homero decorou de madrugada
De pé citando Proust na calçada
Propôs-se resgatar Montesquieu

Família, emprego, amigos esqueceu
Já “que um poder mais alto se alevanta”
E tanto Hugo no almoço, Joyce à janta
Não poucos comensais aborreceu

“Tocado pela musa” concebeu
E foi ao mundo em busca de miragem
Muniu-se de fornida carruagem:
Com tomos a cabine preencheu

Um livro lhe caiu, não percebeu
E foi parar na tenda de um labrego
Que ali vivia um tédio e um sossego
Até que a boa escrita o revolveu

A pena do campônio floresceu
Teceu a epopéia mais notável
Que veio à luz num livro elogiável:
“Tal bardo arte maior nos devolveu”

De volta da viagem que empreendeu
O outro lhe visou a nomeada,
Citou-lhe uns loas maus, letra empolada
Ouviu: “tu és um gênio” e ainda creu.

terça-feira, fevereiro 01, 2005

Si vis pacem

Tavinho só não gostava de brincar de guerra com Teteu porque ele atacava de surpresa com seu exército de robôs, antes de declarar guerra, como tinham acertado no início.

Tinha muito poder de fogo o exército de Teteu, maior que o de Tavinho, que estava desfalcado de doze andróides torpedeadores, cinco lançadores positrônicos de raios tetragama e uma unidade inteira de artilharia próton tecnoblindada, emprestados ao vizinho Tonho, para a guerra contra seu primo Muvuco, e ainda não devolvidos.

Apesar disso, Tavinho recusou-se a pedir clemência, preferindo dizer que não valia atacar naquele momento, porque o papai estava trocando a botija de gás na cozinha e a mangueira deixava vazar um cheirinho de gás. Teteu não quis nem saber, e atacou o oponente com tudo que tinha.

Todos conseguiram sair sozinhos dos escombros da casa, até o papai e a mamãe, que não sabiam da guerra. O papai ficou meio irritado por causa do barulho, mas o que o tirou mesmo do sério foi o Julinho da seguradora dizer, sem tirar os olhos do videogame, que o seguro não previa mangueiras com defeito.