sexta-feira, fevereiro 26, 2010

A voz que se ergue sobre as águas

Hoje é dia de maremoto. Acontece uma vez a cada miríade de sensações baratas, para confundi-las com a poeira sem memória. Hoje as ondas revoltas desagendam os compromissos assumidos sob o manto errado. As vozes se evadem, cada uma seguindo uma fresta nos escritórios e cozinhas das vivendas de todos os dias manchados do mesmo. Todas caíram de seu lugar no mundo, rejeitadas pelo soterramento dos meses e anos. Somente uma delas manifesta sua fala resistente, e não porque lhe dessem algo, e não porque a fortuna a houvesse poupado de sucumbir. Mas porque não fala de tarefas obrigadas, nem declara a escalada da pele e a revolução de secreções. Ela desimpede o caminho dos parques, o riso das crianças, as mãos enlaçadas dos casais na grama perfeita. Constrói o céu dos clandestinos, a praia dos náufragos felizes. Ela canta todos os dias e noites a canção esquerda para que o mundo faça sentido.

sexta-feira, fevereiro 19, 2010

A ameaça que vem do Éden

Todas as membranas estão inflamadas, todas as couraças emitem um ruído peculiar de salvaguarda exposta. Há no infinito das palavras um quê de imensidão devassada, de cura perdida, de equilíbrio sacudido pelo riso. De repente é preciso entoar cantos que falem de algum vale sonâmbulo em que não cabem multidões. Às favas o insincero e medido elogio da segurança, que se percam no esquecimento e no ridículo as senhas e suas mãos crispadas, seus tiques nervosos diante da porta fechada, ao diabo todas as contraindicações que tentam inutilmente encobrir a doçura do fluido, o mergulho no paraíso da ampola. Estou em pé, diante da extrema e nova luz que brilha cada vez mais perto, abro os braços e os olhos, sedento da ocasião proibida, negligente ao antigo brilho dos vaga-lumes, meros arautos do verdadeiro brilho. É tarde demais para voltar à caverna, e cedo demais para biografar a manhã.

terça-feira, fevereiro 16, 2010

Excesso de velocidade

As flores de nomes secretos, as cálidas pétalas que acariciam o rosto único, as ondas do mar que jamais se repetirão, assim como os sonhos, assim como a trajetória do carro veloz que nunca se apressa com a mesma intensidade, toda a pulsação enérgica encoberta pelo filme que sequestrou o vidro em prol da nudez. Os pés que desdenham da leveza, que brincam de poder entre acelerador e freio, zombam do mundo estático, lançando sobre ouvidos incautos o ronco do motor e a cantiga das rodas domadoras de asfalto. O brilho prata que se derrama na correnteza do futuro, de se perder de vista em homenagem à sua pressa, de se guardar na memória como um episódio da civilização.

sábado, fevereiro 13, 2010

A chegada

Desanuviaram-se meus olhos. O avião de rumos sempre ignorados derramara-se na pista há coisa de minutos fracos. Comparei os rostos, ela detinha a vista dos aplausos, os outros viventes dissipavam-se na fumaça. Só ela era real, ninguém mais resistia ao segundo olhar. Eu vislumbrei sem pressa o caminho aberto até seus olhos, o vento que seus cabelos faziam cantar no mundo. Desci lentamente a escada, indiferente a protestos de turba apressada. A pele que me trazia ao cenário tinha de mim a fome elegante. Já no nível do chão, meus pés desdenhavam da distância, era manso o passo até o brilho que aprendi a ver ao mirar estrelas. Ela estendeu os braços, silenciamos um gesto de aconchego lento e calmo. Pela primeira vez na vida, eu estava em casa.

terça-feira, fevereiro 09, 2010

Os cabelos dela em delírio

Nada arrazoados os caimentos dessas fibras, o súbito poder que me estimulou à vestimenta dos teores contrários. E tão caóticas foram as madeixas da dama sem bússola e radar, que corrompe o mutismo sob a chuva para me dizer que se findou a ânsia do dia natural. E foi-se a noite realidade afora, expulsa do sossego aos golpes de raios e trovões que se vingavam da coragem de dizer a contramão do bom gosto. E fui eu também feliz à minha maneira insidiosa de quem perfura poços na atmosfera, em vez de mergulhar na sonolência dos cântaros.

domingo, fevereiro 07, 2010

Derrubai as nuvens

Era só por muita teimosia que aquele anônimo estava ali, desnudo de sol e chuva, sedento de intempérie. E nenhum calabouço mudo o engoliria na imaturidade de uma manhã sem música. Nem ele mesmo se havia convencido na natureza dos dias que se bastam, por isso não mais o cadafalso lhe moveria os dentes nos pés dispostos a correr sem limite nem explicação. Uma só coisa o cansava, na magnitude dos compostos estranhos ao seu quê tão volátil e espontâneo: é que faltava alegria aos que ficavam na margem. E suas carrancas de vaticínio funesto eram coisa de lhe drenar força bastante. Então sobrepôs a eles uma máscara de equidade: todos eram felizes por tê-lo visto passar. E passava, indiferente à acusação de vaidade dos que não o queriam soberano e livre. Mas eu o vi, antes de impregnarem o ar de grades, a água de cuidados, a sensatez de desvãos, o bem-estar de ressalvas. E fui feliz ao contemplar a breve e indelével marcha de quem nada impôs, senão a posteridade sem nome, em todos os dias da paixão imediata.