sábado, junho 14, 2008

Do lado errado

Deus abençoe Marina Diva. Seus deleites me deram viço, o cansaço que me impôs tirou-me do Vale da Sombra da Morte. Fato é que nenhum canalha aparecia em sua vida havia muitas luas. Eu é que, descendo a serra entre golpes de perna aleatória, fui descoberto por ela, que já tinha entre os dentes a chave de casa. Caçadora, e eu bem quis chamá-la Diana e não Diva, mas já a certidão se havia lavrado e ninguém, nem mesmo eu, poderia mais desdizer minha heroína.
Não comia mel silvestre nem gafanhotos. Dera-se ao gasto de cifras que não tinha, a bem comprar pão e circo supérfluos. Sua efígie desaparece agora com a areia dos dias. Doarei aos pobres o cabedal que não conseguiu levar. Deitarei no silêncio a lembrança das sirenes de sua prisão, de suas narinas gulosas farejando a poeira nevada. Regerei em seus lábios com a batuta do cigarro que por lá é moeda. Falarei aos seus filhos e netos da névoa indômita que foi passar os anos calculando uma delação.

quinta-feira, junho 12, 2008

Fora de cena

Lamentamos muito a iniciativa dos meios de comunicação de explorar a deformidade de Rodolfo, o rapaz vitimado por um acidente que deixou desfigurado o seu rosto. Um chamariz para donos de circos de horrores. Também lamento que uma das revistas, tendo Rodolfo na capa, chegasse às mãos de Balbino, que simplesmente a jogou fora, enojado com aquele espetáculo triste. E queremos desde já esclarecer que, para fugir aos grandes espasmos da mídia, de que sempre se afastou, enojado, Balbino ligou a tevê, apenas para ver em cores e movimentos a face deformada e triste de Rodolfo. E após desligar a tevê, Balbino saiu para uma volta pela rua, que ostentava nas paredes e muros os cartazes da campanha pró-Rodolfo tentando arrecadar fundos para o sustento do rapaz que, desde o acidente, jamais conseguira um emprego.

E testemunhamos que para tentar sair de tal redemoinho, Balbino procurava pessoas nas ruas, nos táxis, nos ônibus, nos restaurantes, para falar de algo elevado ou ameno, mas as palavras do interlocutor cedo ou tarde colhiam no ar algum sintoma de Rodolfo e o enfiavam na conversa.

Assim é que Balbino percebeu sua missão e resolveu ceder à corrente que o tragava. Ele está agora no ápice da vida, exercitando pura misericórdia. Ele tem estricnina na seringa, e perfura com agulha santa a veia de Rodolfo, que olha para ele como para um anjo. Balbino derrama sobre Rodolfo seu recém-adquirido olhar indulgente e contempla o hálito cessante do desfigurado. Ele agradece aos céus e declara aos microfones e câmeras sua missão de profeta.

A todos uma boa noite.