quinta-feira, julho 16, 2009

Esses anos músicos

Um vento passou por aqui durante todo o dia de hoje. Não é um vento de mover folhas, no entanto. São esses anos músicos que passam assobiando a fanática solicitude do tempo em deitar sepultos os filhos da terra. Eles movem folhas de calendário, páginas de diários, endereços e certidões.

Eles encobrem o ventre com uma mortalha de vento frio toda vez que falta pouco, toda vez que já passou tempo demais.

E antes dos corpos, não perecem os sonhos, a ânsia do vir a ser um dia? E não se enruga a carne antes de deixar os ossos, não se turva o olhar às vésperas curtas ou longas do último fechar de olhos?

domingo, julho 12, 2009

A ponta do iceberg

- O que é isso, Aderbal?
- É a ponta do iceberg
- O quê?
- Ora, Amália. Não vá me dizer que você nunca ouviu falar na ponta do iceberg. O iceberg inteiro,vá lá, quase nunca ele aparece. Mas a ponta...
- Você enlouqueceu, Aderbal? Isto aqui é apenas... apenas...
- A ponta do iceberg. Eu sei. Há muito mais lá embaixo. Mas estou prestes a vê-lo inteiro, desvendar esse mistério.
- Você está delirando, Aderbal. Não existe nada disso. Pára de puxar isto para fora. Alguém vai ver e não vai gostar.
- É isso que tem que acontecer. Alguém ver e não gostar. Se intrigar. Se incomodar. Como pode um iceberg inteiro por aqui e a gente se contentar em ver a ponta, se muito...
- Nossa! Como esfriou, de repente!
- Viu? Já está vindo à tona. Acho que está na metade.
- Se você não parar com isso agora eu vou embora, ouviu? Vou te deixar aí com o seu iceberg.
- Você não pode fazer isso. Mais de dez anos casados. Os meninos. Um patrimônio...
- Escolha: o iceberg ou nós.
- Ta bom. Droga! Nunca mais vou ter uma chance assim.


- A senhora tem certeza de que ele não descobriu?
- Sim, tenho. No máximo viu a metade.
- Ok, a senhora será recompensada. Nunca nos esquecemos de um colaborador.
- Mas... aquilo... era mesmo...
- A ponta do iceberg? Não se sabe. Seja como for, foi levado pela corrente. Um brinde à corrente.
- A ela... tintim.