segunda-feira, maio 22, 2006

Fênix

Não ia escrever nada. Nem uma linha. Faltava inspiração. Que digo, faltava meia lufada de fôlego para dar fração de passo, erguer a caneta, acender a luz, mandar ao diabo todos os trejeitos lodosos do cansaço do dia. Nada sairia da pena, o dia seria morto, causa mortis: falta de rebeldia, de levante contra a rotina, que o dia vale a pena na razão inversa de sua utilidade. Até que li. Mais do que ler, duelei. Mesmo agora estou suado da luta contra uma só de tuas peçonhentas, pontiagudas, ciclópicas cartas, tuas escancaradas gárgulas derramantes de fel explícito, pululantes de mutações. O esfalfado pedinte de horas livres deu lugar ao ensandecido caçador de teclas, que doravante arranharia com garras de liga ácida as portas da expressão, arrombando-as se possível. Foi assim que pus caneta e papel diante dos olhos, arremessei meia dúzia de adjetivos em cada nome simples ou metido a besta, chacoalhei dezenas de verbos, como dados de cassino que me dessem fortunas, espremi contra a parede cada substantivo sem recurso: paga-me o que me deves. Então, carta feita sobre a mesa, cometidos todos os crimes, desfeitos todos os tabus, contrafeitos todos os bons sensos, abri a janela, chamei um, dois, três pombos-correio, o primeiro que viesse, o que melhor se prestasse a derrubar os quilômetros sem alimento especial, sem recompensa, somente pelo prazer e pela dor de ir, de traçar mais um caminho aleatório e louco. E achei, sempre os acho, atrelei-o à missiva, aos poucos, acostumando a ave ao calor da letra, e devolvi ao espaço o que lhe era pertinente, depois de apontar uma só vez para o rumo de tua morada, que sempre sei onde fica, Meca de uma vida inteira. Agora lê, maldita, lê o que te espera do vulcão que me tornei, bebe da lava que sou para debelar o dragão que és, ricocheteia de dor pelas paredes da caverna onde jamais te acharão em vida. Esvai-te em pó, menos que fóssil, lembrança oca, sombra ilegítima, o rematado nada. Que eu fico aqui e me deleito já insone com teu ruidoso espargir de cinzas. Pelo menos até que outro dia traga a minha mesa de acepipes e jogos mais uma ogiva desferida por tuas vísceras. E tudo recomece, sem remédio.

terça-feira, maio 16, 2006

Paralelos, para lê-los

Vosso singelo narrador e descritor - não raro, desertor - de escrevências está com uma tenda armada nestas paragens:

http://www.paralelos.org/out03/000834.html

Tal indigno bardo desde já estende o tapete vermelho e agradece as visitas.

sexta-feira, maio 12, 2006

Personagens

Nem sempre chego direto ao porto.
Às vezes vou editando a fala
Aproximando-me do rosto final
E quando termino o insulto ou presente,
Vem um sorriso calmo
De um rico proprietário de palavras

Nem sempre chego direto ao porto.
Às vezes vou contornando os faróis
Redesenhando a costa
E quando aporto, trazendo um príncipe ou um vampiro,
Vem um sorriso calmo
De um guia que sabe que não vê