segunda-feira, outubro 25, 2004

Toque de Midas

Era tudo brincadeira. Vandico deu dois passos para trás, como no faroeste do pai, perdido no baú do escritório, mas na memória prodigiosa de seis anos de idade. Midas também deu dois passos para trás, incapaz de partilhar das brincadeiras do filho precoce, primeiro em todas as matérias, modelo da escola. Passou de ano sem uma nota abaixo de nove e meio. E a pergunta: o que é balística, pai. E a explicação. E a demonstração. E a falta de limite.

E, de repente, o disparo. Real, não o clique esperado. E ninguém estava ali para explicar quem carregara a arma, e por quê. Vandico precoce descansa sob centenas de aplausos do pai que não pára de fecundar a terra. Midas olha para as mãos e só consegue ver um revólver de metal pobre.

sexta-feira, outubro 22, 2004

Segredo

Uma página cor de carne, de quase surpreendida, acaba não lida, e vai às pressas parar numa gaveta secreta. E fica lá, a salvo de curiosos, como um tesouro oculto do leitor sobrevivente de tantos flagrantes, que lhe custaram umas gotas de suor clandestino. Depois de tantas luas, tantas nudezes escondidas da mãe, do pai e do tio tarado chantagista, o leitor cresce, arruma a gaveta e diz: era só isso? E esquece que a pele tem idades.

quarta-feira, outubro 20, 2004

Restaurante

O lugar da devoração. Os homens se medindo, enquanto comem. Nutrem-se de si mesmos, mais do que da comida.

A moça desliza entre as bandejas enquanto busca preencher a lacuna modesta. Hoje tem pernil assado, o homem diz às suas costas, uma fala grosseira, enquanto abastece largamente o prato. Ela nem sabe se o sujeito fala dela ou do cardápio. Por via das dúvidas, enrubesce.