sábado, janeiro 05, 2013

Avalanche de um só

As pontas dos dedos caem na medida exata do destino próprio riscado pelo desejo alheio. A sensação é que não poderia ser de outra maneira. Em seguida, as porções restantes de indicadores e polegares, e de dedos médios, para que o obsceno lhe seja inacessível, e apontar seres e coisas se transforme numa graça telepática. Mais adiante rolam os braços e mãos no abandono de todas as chances, e ficam as pernas pelo caminho, como se fartas do compasso ao perseguir o que não mais será. O torso restante se abaúla, se arredonda, perde ângulos e particularidades, refreando cada vontade a que um dia teve acesso e direito. Rola escada abaixo, a escada curta que separa a sala de reuniões do porão escuro. Poupa o solo da trilha de detritos, colidindo com a parede áspera e subterrânea, e resume todos os movimentos e pulsações ao mínimo de sinais vitais, e tende a se consumir num indiscernível caldo de esperas.

sexta-feira, dezembro 21, 2012

O guardião

Sempre se intromete no fim do mundo alheio, esse achado de outras eras terminais. Bem que podiam avisá-lo de que o erro é contado em pontos multiplicados, que o asseio das boas atitudes nada tem a ver com isso. Podiam esclarecer que os ideais são chacotas de algum mago descrente dos feitiços, com uma garrafa de aguardente rasa abraçada junto à toga gasta de nada transformar. Mas não, ninguém apregoa que todo o fisco das horas passadas diante da plateia é mecanismo de encher os bolsos, e continuam chegando esses visionários gerados na fuligem, procurando algum vestígio de arte pela arte na prateleira dos acenos luminosos. Quando eu vir o próximo, vou disparar minha torrente de plasma encerado no deboche. Ele ficará ali, prisioneiro do mal das caminhadas sem futuro, imóvel e suscetível a todo o escárnio cínico de nossa gloriosa era. Quero ver se assim continua levando a sério essa sua missão ingênua. Vamos ver se ainda assim continuam me chamando de otimista.

sábado, dezembro 08, 2012

Sem nobreza

Impregnação de risos, e eis que estou à porta e bato. Ainda mais que antes de tudo eu já era, imerso na perambulação dos velhos signos sem relevância. Você se furta ao embate contra os desígnios divinos, meu caro, mas nada neste vale está acima da sombra da morte. Seu contrassenso reivindica uma existência já condenada. Venha me render esta sua última e inútil homenagem, em que pese essa a fala roufenha dessa sua insistência em comprar outro subterfúgio. Não sou de protelações, meu amigo, não negocio prazos, como os seus advogados. É na cova fria que sua intempérie de homem de ação descansa no meu deboche. Tanto pior para você, se me rejeita, tão indiferente é para mim arrastar um camponês ou um presidente de conselho de acionistas, um inopinado morador do deserto ou vinte mil soldados nas trincheiras aparentadas com o esquecimento. Sem essa delonga de choro convulso, que a minha comoção traz a marca de toda caveira, os dentes à mostra para lembrar a matéria cínica de que sou feito. Adiante seu primeiro passo neste umbral, e toda rendição será só o clichê dos vencidos. O calendário é o epitáfio comum.

quarta-feira, fevereiro 01, 2012

Sobrevida

A alguém que espere em dia ventoso e inquieto pelo trem que não deu a conhecer seu horário, pelo navio que ninguém sabe se chegará.

A quem tenha passado a vida carregando bagagem de que desconhece o conteúdo, se camisas puídas ou novas, se meias de sete léguas ou centímetros.

Mesmo que te esbugalhassem continuamente os olhos, as benesses e o inusitado e tanto acervo inatingível dos horizontes nunca pisados por ti, fato é que esses teus olhos se adaptariam, órbitas dilatadas, grandes esperas disformes, ao ritmo e à cor desse dito maravilhoso, e tanto de tanto passaria a ser para ti trivial.

Pelo que toma agora teus passos puídos, calça tuas velhas alpercatas sem intensidade, põe às costas o suprimento de pão reles e gasto, mete-te na estrada, que só findará quando findares, e onde de quando em quando te dirás feliz por teres logrado por mais um dia o urubu.

segunda-feira, outubro 10, 2011

Comentário sem adoçante

Não é que haja luz em quantidade suficiente. É que nossos olhos se acostumaram à inexorável escuridão. E se dizem, sem nexo com a cena, que a água se tornou mais fresca é que não percebem a própria pele em ebulição de misérias termais, capaz de achar graça fria na água morna.
O vento que nos enche os cabelos de um prazer vibrátil, se abrimos a boca para colher seu ar supostamente benfazejo, captamos a contragosto partículas de ossos tornados cinzas, vindas de outras paragens, tão estrangeiras que delas não temos nome nem memória.
Não é sua saliva, comissão de julgamento, é só uma letra a mais no mistério da chuva.

quinta-feira, julho 07, 2011

Empedernidos

Estátuas, como se deixar de pairar, efetuada a paralisia, fosse estatuto e requisito para uma amalgamante cara-metade. Ensimesmados, indecifráveis, em seu mistério desinteressante de desamar-se paulatinamente.
Estáticos, tudo menos fremente, de uma pobreza de movimentos aliciada pela alma comum e aprisionada no pior silêncio sem hálito um do outro. Vasos que se preveniram contra o naufrágio e decidiram deixar de navegar. Uma mal-aventurada e eterna temporada entre negrumes de rocha.
Mas passa um turista, passa um gaiato, passa um ressentido, um covarde com esgar de desprezo pela acrobacia e pelo voo. E chama os empedernidos de amantes. E os condena à eternidade.

segunda-feira, maio 16, 2011

Inauguração de olhos

Estilhaçou-se um véu em toda a extensão da planície das almas. De cada pedinte ouviu-se um clamor de dádiva, de cada medida o sopro imponderável do acontecimento espontâneo. Eu bem que vejo as artérias de desejo vertendo um fluido esperançoso e forte. E onde a novidade for matéria de dúvida, essa nova cogitação lhe fará justiça. A explosão de um novo caminho de luz deita fora os obsoletos rascunhos lançados no mundo com a intenção da previdência. O primeiro passante, de pés ainda vacilantes pelo muito peso da tradição do tédio, começa a transitar diante dos invejosos dias velhos.