segunda-feira, agosto 29, 2005

Início

Empoleirou-se na manha, como o galo rouco que o acordara. Procurou os próprios pés, descerrando o lençol, só para achá-los limpos, e não enlameados como no sonho, após matar um antílope de seis patas a dentadas.
A água fria do chuveiro devolveu-lhe por completo a realidade de umas contas a pagar. Depois disso, houve nenhum assunto para conversar sozinho, exceto a excessiva aspereza da toalha gasta. Enxugou-se abrasivamente, conseguindo vencer a porta emperrada do banheiro. Achegou-se à estante da sala e até pensou em abrir um romance, mas deteve-se diante da foto na segunda prateleira, bem ao nível dos olhos, como um produto promovido no supermercado. Barba e bigode e batom e cabelos longos entrelaçaram-se num abraço distante, mas ainda quente. Pensou em rasgar uns livros, junto com as contas na prateleira de cima, mas terminou por agarrar de má vontade as dívidas numeradas. Então vestiu-se mais de cinismo que de roupas, detendo-se no portão para abrir seus dois ou três cadeados, de haste curva como um ponto de interrogação esquecido em algum livro menos didático de uma história distante. Quando escancarou o portão e espetou os pés no chão lunar da rua medíocre, engavetou certas frases de efeito que insistiam em emergir estupidamente de algum livro de auto-ajuda emprestado entusiasticamente pela irmã mais nova.
O asfalto o esqueceu, como esqueceria um terremoto que o tivesse rachado. E quando desceu do meio-fio e atravessou a rua, apanhando o mesmo velho ônibus de todas as manhãs, já se sentia voar com asas maiores que o labirinto e menores que o sol.