sexta-feira, dezembro 10, 2004

Caminho de Damasco

Não há nada de errado em sentar no meio-fio. É até um exercício de despojamento, e conseqüentemente, de relaxamento, porque parte da tensão de todos os dias está no medo de cair do mundo, de perder seu lugar ao sol dos holofotes. Sentar no chão, sem níveis subseqüentes olhados com arrogância, ilustra uma vida sem o peso de todos os holofotes que a maioria carrega para ligar de tempos em tempos sobre si mesma. Mesmo quem senta no meio-fio da calçada da fama não tem do que se orgulhar. Candidata-se a tirar o mundo das costas.

O problema de uns é que foram lançados no meio-fio. Não escolheram, caíram, e a sarjeta ficou sendo menos que um prêmio de consolação. Tombaram dos arranha-céus, às vezes dos escombros dos arranha-céus, e novos degraus não surgem. Vejamos se me lembro de alguém assim. Ah, claro, Saulo. Falemos dele. Só um pouco, enquanto está chovendo. Depois vamos cada um para o seu lado. Ele me lembrava muito o Saulo bíblico, antes do caminho de Damasco, antes do encontro com aquela Luz toda. Esse Saulo moderno também tentava carregar sua própria luz. Por onde anda, você me pergunta, como se só agora se lembrasse dele. Como se não fosse o nosso Saulo, antes da derrocada, o sujeito mais deliberadamente visível do nosso meio. Era obrigatório vê-lo, sofrer seu marketing. Alardeava tudo que fazia, um homem do seu tempo. Antes de quebrar daquele jeito a gente sempre dizia que era o único de nós que tinha dado certo na vida.

Verdade que fazia algum bem. Chamava de caridade. Nem sei se ele leu Maquiavel, mas a sua mão esquerda sabia bem o que a direita fazia. E os pés. E todos os corpos em volta. Dava suas esmolas, discursava no funeral dos famosos, visitava os leitos ricos, gastava latim barato contra inimigos óbvios. Sem ironias, só piadas claras, vulgares. Teria ele aprendido a tática com a Teoria do Medalhão? Não, Machado lhe daria nós na cabeça. Não creio que lesse nada além dos gurus da prosperidade.

A prosperidade? Durou uns anos. Previsível demais. Claro que festas, lógico que uns carros, sem dúvida um apartamentão beira-mar. Depois os parceiros errados, as hipotecas cósmicas, os empréstimos delirantes. Gerentes viraram as costas, sócios desapareceram, namoradas “repensaram a relação”. Escombros e o chão duro.

Torço por ele. Talvez você também. Uma história comum, sem muita originalidade, mas espero que acabe bem. Freqüentemente acaba bem, mesmo que sem a pompa das vésperas. A luz, o tombo do carro no caminho de Damasco, ou dos escombros, e o recomeço. Por sinal, o meio-fio está pintado de branco. Deve ser dia de festa.