segunda-feira, maio 24, 2010

Projeto de acaso

Os jatos propulsionam para o além das terras cinzentas. Deixo uma lufada de pó e vento tórrido para os pósteros. Rota corrigida até o perder de vista, sem cálculo que premedite a façanha necessária, aquela que não se faz por vaidade, mas pelo trajeto inverossímil de mais um dia, pela esperança de algum nascer do sol em terra dourada ou triste. Nada de contar os golpes desferidos no inimigo, nem medir o tempo que leva para morrer. Tal precisão é a receita que nos mata. E o fogo que nos aquece na noite deserta não tem graus, oriundo que é da fagulha do imponderável. E nem importa com quantos passos se chega ao cabedal do transporte, nem quantos cavalos-vapor é preciso gastar na travessia, e nem se pode chamar de travessia o corte de um espaço fadado a não findar.

quarta-feira, maio 19, 2010

Benditas sombras

- Tenho medo de passar a ver monstros dentro de casa, doutora.
- Mas o senhor vê monstros dentro de casa?
- Não, mas tenho medo de passar a vê-los.
- Mas por quê?
- Tudo que pode dar errado, dá errado...
- O senhor não verá monstros em casa a menos que ache que precisa vê-los.
- E como posso precisar vê-los?
- O senhor não precisa, por isso não os verá.
- E se eu não os vir, estará tudo bem...
- Tudo bem.
- E como moro sozinho, continuarei sozinho em casa.
- Sim.
- Sem monstros.
- Somente o senhor.
- E... bem... como faço para precisar vê-los? Sabe, os monstros...

sábado, maio 08, 2010

O silêncio é de outro

Cerre os lábios, passageiro. Abstenha-se de desferir os arriscados verbos que o podem encerrar na prisão dos afetos, aos pés de quem tem poder para prendê-lo e soltá-lo. Cultive a proverbial mudez, enregelado na masmorra de sua segurança de papel. É cíclico o seu jejum de palavras profundas, irrisória a sua façanha de não dizer que há fogo no coração. Mas, desde já, grave nos olhos e na pele, escreva no diário e nas palmas das mãos a profecia que todos conhecem, menos você: que das águas distantes virá aquele que profere a sentença exata, e lhe tirará o ouro das mãos, e por não temer perdê-lo, ele dançará na biografia do estranho. E seu silêncio, passageiro, a sua mudez segura e indevassável, será a canção do vencedor.

terça-feira, maio 04, 2010

Todos os golpes

Em andrajos e à margem da festa, apedrejado pelos dias e pelos quilômetros, diante do quase pódio e aquém de todas as medidas. E rarefeito no fôlego, e perseguido por imagens torpes, e despencado do arco-íris. E impregnado de manchas, e destituído de horizonte, e esquecido das orações, e cuspido nas ruas. E abandonado pelos últimos, e desdenhado pelos primeiros, e morto em prestações de consórcio, e enriquecido de miséria. E atiçado pelos cães, e derrubado pela febre, e naufragado no impossível, e explodido em pedaços de zombaria e dúvida. E atravessado por roubos, e submerso nos vícios, e pendurado em todas as árvores, e lançado fora pelo canto dos fantasmas. E só, inexoravelmente só, como nunca esteve a mais distante muralha batida pelo vento.